A Lenda do Xigris


... Era uma vez um medicamento que prometia ser revolucionário no tratamento da sepse: Alfa Drotrecogina, mais conhecido como Xigris.  Durante 10 anos esse medicamento foi vendido como o milagre da medicina, mas agora foi provado que ele não é melhor do que placebo: recentemente o FDA publicou um alerta oficial dizendo que a Eli Lilly vai retirar o Xigris do mercado devido falha do medicamento em melhorar sobrevida dos pacientes.

Figura 01 - Alerta do FDA sobre a retirada do Xigris do mercado

Mas como um medicamento que supostamente seria um revolução na medicina simplesmente não tem efeito?! A Lenda do Xigris começou em 2001 quando o medicamento foi aprovado pelo FDA para comercialização: o estudo fase 03 necessário para sua aprovação (PROWESS) tinha várias falhas metodológicas (como mudança do protocolo quando metade dos pacientes já haviam sido inclusos), mas mesmo assim o FDA aprovou o Xigris e pediu que fosse feito outro ensaio clínico para confirmar a sua eficácia. Devido essa incerteza, a Lilly investiu em uma campanha de marketing agressiva: publicidade focada nos médicos, diminuição dos estoques do Xigris para sugerir que a procura era grande e patrocínio de um grupo de médicos e estatísticos para criar um guideline sobre sepse. E foi assim que o surgiu o Surviving Sepsis Campaign, em teoria para aumentar a conscientização sobre o tratamento da sepse, mas no fundo mais uma estratégia da indústria farmacêutica!


O que um medicamento novo e caro precisava para ser prescrito e vendido? Que alguma referência importante certificasse a indicação do seu uso! A Eli Lilly foi a grande patrocinadora do Surviving Sepsis Campaign (SSC), um guideline sobre tratamento da sepse apoiado por mais de 10 sociedades médicas, publicado no período mais importante de Terapia Intensiva (Critical Care Medicine) e amplamente usado por todos nós! No guideline, o Xigris tem uma sessão própria de uma página inteira, ganhando destaque semelhante a outras condutas já sedimentadas. Posteriormente à publicação da 1ª edição do SSC, dois novos estudos (ADDRESS e RESOLVE) foram publicados e ambos foram interrompidos porque havia risco aumentado de hemorragia intracraniana e não havia evidência de diminuição da mortalidade. Mesmo assim, a edição de 2008 do SSC ainda trazia o Xigris como opção terapêutica e, apesar de falar desses estudos, não mencionava o fato de terem sido interrompidos!  

Graças ao Surviving Sepsis Campaign o Xigris alavancou suas vendas e, por quase uma década, muito dinheiro foi gasto com um medicamento que simplesmente não tinha efeito! Depois de publicado no SSC, a indicação do Xigris estava presente nas maiores referências, como no UpToDate, e esse medicamento virou alvo de um forte mercado que existe no Brasil: processo judicial para que o SUS e planos de saúde paguem por um tratamento! Basta procurar pelos termos "Xigris" e "justiça" que vocês verão os inúmeros processos. Levando em conta que cada ampola do medicamento tem 20mg e custa R$ 7.000 e que a dose necessária é 24mcg/kg/h por 96h, são necessárias, em média, 08 ampolas para o tratamento de um paciente, ou seja, R$ 56.000/paciente!
Figura 03 - Gráfico de venda do Xigris.
Como a lenda de Xigris morreu? Duas fortes evidências comprovaram que o medicamento não era melhor do que placebo: o ensaio PROWESS-SHOCK e uma metanálise do Cochrane, a qual mostrou que o Xigris tanto falhou em diminuir o risco de morte, como aumentou a incidência de hemorragia intracraniana. 
... e nem todos viveram felizes para sempre.


Referências:
1. Bernard GR et al. Efficacy and safety of recombinant human activated protein C for severe sepsis. N Engl J Med. 2001;344(10):699.
4. Dellinger RP, Levy MM, Carlet, JM, et al: Surviving Sepsis Campaign: International guidelines for management of severe sepsis and septic shock: 2008 [published correction appears in Crit Care Med 2008; 36:1394–1396]. Crit Care Med 2008; 36:296–327.
5. Martí-Carvajal AJ et al. Human recombinant activated protein C for severe sepsis. Cochrane Database Syst Rev. 2011 Apr 13;(4):CD004388.
6. Eichacker PQ, Natanson C e Danner RL. Surviving Sepsis — Practice Guidelines, Marketing Campaigns, and Eli Lilly. N Engl J Med 2006; 355:1640-1642




10 comentários :

  1. Muito esclarecdor. Parabéns pelo excelente trabalho.

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  2. O grande teste com seres humanos acontece quando o medicamento começa a ser vendido,infelizmente a verdade é essa. Por isso que temos que ter cuidado com as panacéias que tentam nos convencer a prescrever. Vide capas da veja com rimonabanto,insulina inalatoria (retirados do mercado em menos de dois anos pós lançamento) e agora com a Liraglutida,com a manchete mais irresponsável de todos os tempos: "Parece milagre" em letras garrafais

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  3. Eu sou médico e pesquisador...tenho vergonha de alguns colegas!
    Vi coisas dentro do Servidor Estadual (de pseudopesquisadores da UTI) que revoltam, pois na época, mesmo inexperiente, eu já falava que o resultado final seria esse.
    O Xigris era inútil, e todos sabiam disso há muitos anos. Mesmo assim obrigavam o governo a pagar tratamentos que custaram dezenas de milhares de reais, se envolveram com a indústria farmacêutica até o último fio de cabelo....
    O mesmo caminho está sendo traçado por outra droga, agora o Nexavar (Sorafenibe)para HCC....procurem saber....curiosamente pic.aretas do Servidor Estadual já foram ali.ciados também neste caso!

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  4. Bom post mesmo. Acompanhei desde o início. Me irritei com essa pressão ridícula da indústria e com a falta de bom senso de colegas.
    Só uma observação....cuidado com o UpToDate.

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  5. Eu...
    Colegas, podemos enganar por algum tempo, mas jamais pelo tempo todo!!!!! Indústria farmacêutica muitas vezes nos envergonha e leva junto um bando de sem vergonhas!!!

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  6. Aproxidamente, 5 anos atrás, minha mãe teve sepse grave, após uma cirurgia hepática para retirada de um tumor das vias biliares, e tinha apenas 1% de chance de vida. Foi feito uso do XIGRIS, e, ela felizmente se recuperou e saiu com vida e sem nenhuma sequela. Para nós, o XIGRIS foi a última esperança e felizmente tudo acabou bem.

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  7. Surviving Sepsis Campeign mudou a forma da massa encarar a sepse, hoje vista como doença isquemica, varios objetivos alcançados.
    Corticoterapia revista, pca tambem. Já vi este filme antes, mas a campanha tem muito valor

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